Reflexões


A cidade cheia de pessoas vazias, hoje enche-se de novo.
Tudo sorri, tudo canta de alegria, tudo dança e vive o faz de conta enquanto corações despedaçados se esbarram sem ninguém notar.
Uma criança corre alegre pelo parque e a mãe sentada no banco de jardim á espera do regresso do seu marido que foi viver para fora para poder sustentar a família. 
Um senhor de idade percorre a cidade de uma ponta á outra para ir visitar a mulher, que com o avançar da doença já não se recorda dele e que os filhos o obrigaram a aceitar que ela fosse para um lar porque era um peso demasiado grande para eles.
O mais tímido do grupo esforça-se por provar que é como os outros, diz asneiras, fuma um cigarro, e diz que já "comeu muitas gajas". Chega a casa tranca-se no quarto a lamentar não ser como os outros. A lamentar que os estereótipos da sociedade estejam cada vez mais degradados ao ponto de que o mais fixe do grupo seja o que fuma mais, o que bebe mais, o que fode mais.
A mais cheiinha e a mais magrinha queriam trocar de corpos, porque á sua volta ninguém as faz sentir bonitas, vivemos no meio desta gente que para sermos bonitas temos de ter mamas e cus, onde é que já se viu? Andar com as carnes de fora para sermos alguém, para criar as ilusões de que só assim alguém irá gostar de nós? Cada vez mais o interior deixa de contar, não importa se somos uma cabeça oca e só sabemos falar de fotos no instagram desde que tenhamos o corpo considerado ideal. Depois chegam a casa têm distúrbios alimentares, acabam no hospital, toda a gente posta fotos a dizer que o que importa é o interior quando foram essas mesmas pessoas que deram cabo da vida do outro. Hipócritas!
O pobre veste roupas de marca e passa fome em casa para poder ser bem aceite e não ser posto de lado pela sociedade que o recrimina por usar calças sujas e camisolas rasgadas. Que não lhe dá trabalho porque já não tem idade. Ou porque simplesmente não tem aspeto para tal.
O sem abrigo dorme em camas de papelão, come o que aparece porque ninguém lhe dá a mão. Todos olham para ele de lado sem sequer tentarem saber a história dele, que por ventura poderá muito bem um dia ser a história dos que olham de esguelha e ainda torcem o nariz com desaprovação.
O governo ajuda os que vêm de fora e mostra o dedo do meio a quem está cá dentro. Porque os de cá a única salvação é ir para fora, mas os que de lá vêm têm inúmeras oportunidades cá dentro.
O rico passeia em grandes carros, gasta fortunas em chinelos de banho, compra casas que nunca vai usar, porque não sabe o que fazer ao dinheiro e morre miserável, enquanto que o que não tem dinheiro, o que sustenta a família do ordenado mínimo fica feliz por poder por pão na mesa. Mas não são esses que são prioridades.
Tudo vive no faz de conta, tudo está invertido. 
Tudo é 8 ou 80 nesta sociedade de hipócritas.
Ninguém olha para a mãe sentada no banco do jardim e o marido distante que para terem uma boa vida ao lado do seu filho o marido está num país completamente distante e ambos vivem infelizes, ninguém olha para o idoso que a única alegria que lhe resta é aquela mulher de cabelo grisalho porque os filhos estão demasiado ocupados a viver a vida deles para quererem saber de quem os criou, ninguém quer saber do pobre, e muito menos do sem abrigo que só se lembram deles uma ou duas vezes por ano para aparecerem na televisão como se tivessem feito um grande feito, e o resto do ano onde está a ajuda? A ajudar cada vez mais os bolsos do rico.
Não faz sentido!
Que valores vão ensinar estas pessoas aos filhos deles? Que tipo de homens e mulheres vão ser estas crianças um dia?
Crianças ricas são todos os dias proibidas de brincar com os mais desfavorecidos, todos os dias a diferente orientação sexual é levada como uma doença, “isso é doença” dizem eles, doentes são os homofóbicos que descriminam o amor, amor é entre pessoas, sejam elas de que sexo forem! Doentes são os anormais do governo que só nos ajudam a enterrar, os que olham de lado, os que falam mal e não ajudam a endireitar o que está torto!
Ninguém olha para os de coração partido, para os que se afastam da família para lhes dar melhores condições, ninguém olha para os nossos velhinhos, ninguém olha para o tímido ou para quem não veste o mesmo tamanho, ninguém quer saber dos sem-abrigo, o que importa são os milhões na conta.
Ninguém pediu para cá estar, se estamos aqui merecemos ser tratados com respeito e dignidade.
Ninguém quer saber do que diz que está tudo bem, que já tanta vez disse que estava tudo mal e ninguém quis saber, então ele finge, ele já não se importa se não tem ajuda, porque para os outros é mais cómodo aceitar a mentira do que esticar a mão e ajudar.
Esta reflexão vem de uma das histórias de que ouvi hoje, vinda de alguém que teve uma família e que foi deixada á sua própria sorte, sozinha, confusa, sem esperança no dia de amanhã, perdeu tudo e hoje já não acredita que isso vai mudar.
Todos os dias esbarramos com pessoas de feridas abertas e só porque elas nos sorriem achamos que está tudo bem, nem sempre está, por isso não é justo julgar, não é justo achar que sabemos melhor, não é justo maltratar.
Eu vejo agora que o sofrimento profundo não tem rosto, nem sempre sorri mas também sempre chora, está alojado cá dentro e por vezes quando pensamos que ele foi embora ele apenas se escondeu, só para aparecer de novo com mais força, e ás vezes as pessoas esquecem-se disso, e outras simplesmente não dão a mínima para os outros.
Pobre de quem precisa, porque quem tem não dá valor e quem precisa é quem mais dá, é quem dá o seu melhor todos os dias para tentar de novo, para ser melhor, para fazer melhor, dá mais aos outros que a si mesmo porque eles sabem o que é não ter nada, o que é não ser nada, sabem o que é não ser notado, o que é ser descriminado, e tratado como um lixo, eles sabem como dói e não querem que mais ninguém se sinta assim.
E a cidade fica de novo vazia, e nas suas casas corações partidos descansam á espera de um dia se sentirem de novo completos.

Comentários

  1. É impressionante o quando cada um carregada dentro de si. As histórias, as necessidades, os tormentos; um mundo com diversas ramificações. E, ainda assim, passamos uns pelos outros sem percebermos

    r: Nada que agradecer! Acho que é uma forma de acalmarmos as saudades
    É mesmo :) obrigada*

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  2. r: Fico tão grata por ler isso, de coração *-*
    Verdade. Sinto que precisamos de aprender a olhar mais para os outros.

    Obrigada e igualmente :)

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